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quinta-feira, 8 de maio de 2008

O Modesto

O Modesto tinha nome, mas não sei se era o seu nome próprio ou alcunha. Como geralmente em todas as aldeias, há sempre um Modesto.

Figura típica, certa dificuldade em andar e no falar, o que faz com que a criançada se divirta no meio da sua inocência.

Pois no meu tempo havia um Modesto. Andrajosamente vestido, sempre com os mesmos trapos velhos a cobrir os ossos gastos pela doença, não sei se também pela idade, pois eu não sabia avaliar a idade de qualquer pessoa devido à minha idade.

Estava-mos na segunda guerra mundial. Da guerra, só ouvi falar dela anos mais tarde, visto que não havia comunicações, nem escritas nem faladas que chegassem ao Alentejo.

Da miséria , da fome e de outras privações sempre ouvi falar. Foi o motivo porque o Alentejo em poucos anos quase que ficou despovoado.!

Bem, vou falar do Modesto. Todos os sábados era hábito os mendigos que viviam algures em montes mais desviados da povoação, descerem à aldeia e baterem à porta dos mais afortunados
para assim obterem uma moeda 1/2 tostão naquele tempo.!

Se por acaso, o benemérito não tinha a moeda de 1/2 tostão, dava um tostão, mas o mendigo não podia voltar no sábado seguinte, visto que já tinha recebido adiantado.

Ora um destes pedintes era o Modesto. Era uma alegria para a pequenada, incluindo a minha pessoa, ver surgir a cabeça do Modesto numa rua que era bastante inclinada, primeiro a cabeça depois lentamente o corpo, e nós a pequenada, estava-mos numa rua mais baixa.

Era-mos muitos rapazes e raparigas todos de tenra idade.
Assim que avistava-mos o Modesto sempre com a mesma roupa, descalço, pés tortos calejados e muito sujos, era uma alegria

Mas a principal personagem desta história, é nem mais nem menos o cajado que o Modesto trazia. Era feito de pau de marmeleiro, com muitos nós e muito usado.
Sempre o conheci com aquele cajado.

Ora , quando o Modesto chegava ao topo da rua, nós gritava-mos uns para os outros : - lá vem o Modesto, lá vem o Modesto, ao mesmo tempo que gritava-mos para ele: Modesto, Modesto, não nos apanhas, não nos apanhas!

O Modesto punha-se a jeito, e ao mesmo tempo que se mordia a ele mesmo, preparava o cajado para aquilo que eu jamais esqueci e que ainda hoje me dá vontade de rir. O Modesto tinha um jeito muito especial para segurar o cajado.

Enquanto gritava-mos lá vem o Modesto, lá vem o Modesto, íamos fazendo fosquinhas na sua frente, embora afastados.

O Modesto, atirava o cajado em diagonal rentinho ao chão, e não havia canela que se salvasse. O cajado voltava à posição inicial e a miudagem na sua festa. O Modesto no seu belo estilo repetia a proeza e as nossas canelas ficavam cheias de nódoas negras e muitas vezes até sangravam!.

Nós, só nos retirava-mos depois de muito cansados, mas com a ideia de voltar-mos no sábado seguinte. Pelo meio da tarde todos os pedintes voltavam para os montes, até que surgisse outro sábado. O Modesto não era excepção. Mas nós, a criançada esperava-mos com ansiedade outro sábado.

Ainda hoje tenho a impressão que sinto as pancadas que o cajado do Modesto dava nas minhas pernas.

Mais tarde vim para Lisboa com os meus pais. Pouco a pouco, a Aldeia foi ficando deserta.
As crianças emigraram juntamente com os pais.

Ainda voltei cinco ou seis anos depois ao Alentejo. Perguntei pelo Modesto, mas ninguém soube responder. Disseram que ele nunca mais voltou à Aldeia.

Coitado do Modesto, seria a falta dos nossos sorrisos que o matou? Só Deus sabe!


Maria Gonçalves

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